Entrevistas

Entrevista a Ardiley Queirós

Branco sai, preto fica. Cor, 93 min, 2014. Ardiley Queiros.

Branco sai, Preto fica. Cor, 93 min, 2014. Ardiley Queiros.

Entrevista a Ardiley Queirós:

Um diálogo a partir de “Branco sai, Preto fica”.

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Por Josafá Marcelino Veloso[1]

Filme contundente, de raro rigor. Branco sai, Preto fica navega entre o documentário e a ficção científica, entre a fábula e o filme militante. Ardiley Queiros não se considera um «autor» no sentido proposto por André Bazin. (BAZIN, 2014). Talvez se considere mais uma espécie de «ferreiro-artesão», que com fogo em alta temperatura deu a «liga» necessária para que Branco sai, Preto fica se tornasse a viga vigorosa que é. Ardiley também não é um intelectual e nem quer ser: «Frequentar a faculdade para mim era mais para poder ir às festinhas. Não sou mesmo muito fã da lógica, não. Eu não conseguiria expressar o que eu penso no discurso da academia. Teria imensa dificuldade. Deve ser por isso que eu faço cinema. Eu trabalho com metáforas. Para mim elas são muito mais poderosas!».

Na conversa a seguir, pode-se ainda arriscar reconhecer outra força motriz para a realização de Branco sai, Preto fica. A mesma que levou Eduardo Coutinho a finalizar Cabra Marcado para Morrer, que nas palavras de Jean-Claude Bernadet seria «um projeto histórico (grifo meu) preocupado em lançar uma ponte entre o agora e o antes, para que o antes não fique sem futuro e o agora não fique sem passado». (BERNADET, 2003, p. 227) 

Branco sai, Preto fica busca também ser «ponte» entre um trauma e a reconstrução de uma identidade individual, coletiva. De toda uma comunidade real e ao mesmo tempo «comunidade cinematográfica». Propus a Ardiley uma conversa para desvendar minimamente as potências humanas que se somaram para que o filme alcançasse tal força incomum.

Branco sai, Preto fica. Still.

Branco sai, Preto fica. Still.

Enquanto via seu filme, algo nele me remeteu ao cinema de Ozualdo Candeias. A combinação de crueza e poesia latente nos filmes dele. Notava em Branco sai, Preto fica, assim como nos filmes de Candeias, uma ausência, digamos, de certo «verniz intelectual» entre a câmera e os personagens. Um corpo a corpo com os atores muito honesto. Você de alguma forma se identifica com o cinema dele?

Totalmente. Meu nome é Tonho é talvez o filme que eu gostaria de ter feito. Eu o conheci certa vez, o Candeias. Foi inesquecível. Seu cinema é de uma força que me toca fundo. Os filmes dele são quase como literatura na relação dele com os personagens. Ele conseguia construir uma atmosfera única nos filmes, quase fabular mesmo. Fico até meio comovido por você ter associado o Branco sai, Preto fica com o Candeias.

Quais outros diretores te impulsionam?

Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, praticamente todo o cinema marginal de São Paulo. O Andrea Tonacci para mim é o melhor cineasta do mundo. Bang Bang é genial. Serras da Desordem, por exemplo, tem uma coragem de ir filmando sem saber onde vai dar que é parecido com os processos de todos os filmes que fiz até aqui, desde os curtas. É uma aventura arriscada porque pode não dar certo. Ah, lembraria do Edgar Navarro também, não posso me esquecer dele.

Imaginei que você citaria o Glauber. Alguma razão especifica para não lembrar dele?

Não, gosto muito dele. Não lembrei dele porque toda a minha geração amava o Glauber. Acho que é só vontade de não chover no molhado. Aliás, acho que o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro é um filme fundamental para mim. Para minha vida mesmo. Glauber rompeu fronteiras ali. Ir para o sertão, reunir aquela comunidade de famintos e vê-los cantar seus cantos sagrados desde as quatro da manhã e depois ligar a câmera às seis, sete horas do dia. É uma peça de teatro mágica mesmo. Uma atmosfera muito instigante entre o real e o imaginário. Isso que eu acho o mais importante: conseguir criar uma atmosfera única. Olha, eu aprendi a fazer cinema com 35 anos. Não ligo muito para roteiro no sentido clássico, grandes sets de filmagem, aquela coisa toda. Estou em outra busca, de outra linguagem que vá além daquela visão costumeira que certa esquerda tem sobre os, digamos, explorados do mundo. Essa coisa de tratar os mais pobres que nem coitadinho, oprimido. Essa coisa toda eu odeio! Mas voltando ao Dragão do Glauber. Esse filme consegue essa atmosfera sensacional, em que a fábula atravessa e alimenta o real, e esse real é ressignificado. Acho que nós tentamos alcançar isso em Branco sai, Preto fica.

Sobre as últimas imagens de Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, quando o mítico Antônio das Mortes caminha de costas para câmera pela estrada, escreveu Ismail Xavier:

Antônio segue de costas à beira da estrada, ao lado do posto Shell, enquanto a energia própria dos movimentos dos carros e caminhões definem outro ritmo e ligação com um mundo maior. Terminar o filme com os sinais de integração desse pequeno mundo (palco do teatro do oprimido) na rede de relações que evoca até a ordem internacional. (…) essas imagens do mundo técnico atestam a incorporação de uma situação de fato que o filme deseja reconhecer e incluir em seu jogo. (XAVIER, 2012, p. 309)

Você disse: »nós tentamos fazer isso«. Tenho certeza que sim, de que você é o diretor do filme, aquele que pensa o Todo. Mas seu filme é essencialmente colaborativo, coletivo. Você não se considera um «autor« no sentido tradicional do termo?

Eu sou assim. Todos os filmes foram assim, desde os curtas. Eu não escrevo um roteiro e chamo as pessoas para fazerem aquilo que eu quero fazer. Eu primeiro pergunto para os meus amigos que filmes eles querem fazer. Aí a coisa toda começa. Foram muitos anos para esse filme ficar pronto, muito tempo de maturação. Era um trauma fortíssimo na vida desses meus dois amigos: Marquinhos e Joao Vitor, que sofreram amputações no próprio corpo. Um trauma de toda uma cidade, uma comunidade que é a Ceilândia. Cidade formada de imigrantes nordestinos que vieram construir Brasília. Cidade periférica mesmo. Sem autoestima. Mas que nos anos oitenta viu sua identidade ganhar força com o movimento negro, os bailes de black music, que foram em seguida fortemente reprimidos. Branco sai, Preto fica é sobre isso: dois amigos de infância que tiveram seus corpos… amputados realmente. NÓS fizemos este filme, foi uma conjunção de muitos desejos. Mas agora, como falar desse trauma sem cair na nostalgia, no melodramático, no oprimido coitadinho. Não queríamos fazer um documentário tradicional, queríamos todos fazer uma ficção científica! Uma ficção científica muito estilizada. Uma vez decidido ir por esse caminho, tivemos muito cuidado na construção dos ambientes, sua luz, a composição dos enquadramentos.

Muito elaborado, realmente. Creio que toda a sua mise-en-scène vem a partir do trabalho da cenografia. Um trabalho muito interessante. Quem colaborou com você? Acho importante registrar aqui.

Denise Vieira foi quem fez a arte. Uma arquiteta, na verdade.

Branco sai, Preto fica. Still.

Branco sai, Preto fica. Still.

Dito isso sobre essa camada futurista do filme, é bom lembrarmo-nos do terceiro personagem central do filme. Justamente um viajante do tempo vindo do futuro para coletar dados que comprovem que houve uma repressão brutal aos bailes nos anos oitenta e que é necessária uma indenização do Estado.

Sim, pois é. Nós todos adoramos o Blade Runner. Fizemos entre nós sessões em tela grande do filme. Queríamos fazer algo por aí. Criar uma atmosfera fabular, de ficção cientifica distópica. Fazendo de Marquinhos e João Vitor personagens de si mesmos numa Ceilândia do futuro totalitária, solitária. Um fascismo controla a cidade, no futuro, e consequentemente na reflexão sobre o aqui agora da cidade que queremos propor com o filme. Entre essas duas figuras tem o viajante do tempo que é feito pelo Dilmar Durães, que é um poeta, quase uma figura mítica de Ceilândia. Ele está em todos os filmes que eu fiz. Ele queria trabalhar no filme de qualquer jeito, e queria fazer um personagem totalmente diferente daqueles que ele já tinha feito. Aos poucos chegamos a esse viajante do tempo que navega pelo espaço-tempo em um contêiner com luzes de discoteca que eu mesmo operava. Aí um bando de brutamontes balançava o contêiner enquanto a gente filmava. Ele é um cara, o Dilmar, que cria metáforas vinte quatro horas por dia. Ele é na verdade a chave para a narrativa do filme! Paralelo às dores de Marquinhos e Joao Vitor, este viajante do tempo costura uma camada fabular, irônica e performática que amarra o filme.

É uma imagem muito curiosa, original, essa máquina do tempo em um contêiner. Este personagem entra também como um contraponto cômico em todo filme.

Ele improvisava a maioria das falas. Porque aquilo que ele já tinha na memória de seu corpo, na sua história pessoal, de sua luta, entrou no filme. Tudo aquilo ele passou para o personagem. É um jogo, memória, ficção e tudo junto! Esse contêiner também nos faz lembrar dos navios negreiros, dos caminhões que levavam os nordestinos de Ceilândia para irem trabalhar na construção de Brasília. Marquinhos e Joao Vitor são também personagens de um filme de ficção cientifica, mas que trazem com seus corpos mutilados uma história documental de dor, lembranças. E de nostalgia também, claro. Não dá para apagar isso. Eles eram garotos adolescentes que sabiam todos os «passinhos» de black music para poder conquistar todas as menininhas do baile, aí entra a polícia atirando e faz um ficar preso a uma cadeira de rodas e outro obrigado a usar uma perna mecânica. A indenização pelo que foi feito ainda é uma luta nossa, como você lembrou. Essa luta pela indenização do Estado aos moradores de Ceilândia é real, e é justamente por esta luta estar envolta em fábula, ficção cientifica, é que eu acho que essa reivindicação fica ainda mais poderosa! No filme você pode ver o sonho daqueles caras. A parte da vida e do corpo deles que lhes foram arrancadas.

Creio que para eles foi um rito de passagem a feitura do filme. Quero dizer: reviver seu passado para reinventar um futuro. Com ou sem indenização, mas fundamentalmente reinventar a si mesmos.

Sim, foi fortíssimo para eles. Fizemos uma sessão do filme para eles. Muitas das imagens que desenhávamos no processo tinham a ver com fogo, destruição. Queríamos de alguma forma incendiar aquele passado.

Sim, uma das cenas mais fortes do filme: Marquinhos queimando um sofá onde guardava seus discos antigos. De uma época que ele adora e sente falta, mas que tem que superar. Praticamente um rito. Areia, vento e fogo, muito fogo. E ao lado um homem confinado a uma cadeira de rodas, simbolicamente destruindo suas «muletas» que talvez o impedissem de seguir em frente.

Eu acho também. Você matou a charada. Foi isso mesmo. Queríamos acabar com esse passado, acabar com esse recalque. Sabe, eles todos queriam voar nessa ficção. «Voa, Marquinhos!», esse é o filme, na verdade.

De alguma forma, Ceilândia é o Brasil. Brasil é a Ceilândia?

É. Brasília especificamente nasceu de uma proposta urbana e arquitetônica moderna. Um projeto carregado com símbolos de progresso em sua arquitetura e que sustenta o discurso de um novo momento político e econômico. Um projeto que pretendia pensar um novo Brasil, um novo modelo de convivência com a cidade. “Cidadãos iguais” para uma capital promissora. O prefixo «CEI-» de Cei-lândia se refere à sigla da Campanha de Erradicação das Invasões, imagina. Nossa cidade já nasceu como campanha para ser erradicada. Ela não poderia existir. Mas existe, existimos!

Todavia, esse modelo de Brasília, ordenado e hermético, logo cai por terra. Afinal, onde vai morar a massa de operários que trabalha na construção civil e os migrantes que não param de chegar? Esses habitantes indesejáveis pelas autoridades logo são taxados de invasores, termo pejorativo que, aqui, foi assimilado em substituição ao igualmente pejorativo “favelado”. Desta forma, graças à ideologia de sua gênese e motivada pela vontade das autoridades, a nova Capital Federal sustenta a representação desse modelo asséptico de urbanização e afasta para bem longe de seus limites os “invasores”. Brasília começa sua história tornando invisíveis aqueles que a construíram.

Essa lógica do progresso que acua toda a nossa cultura. Destrói, especula e não põe nada no lugar, essa é a tragédia, não é?

Pois é, como no Rio de Janeiro. Um aborto de civilização. Pagar mil, dois mil reais de aluguel para viver. O meu ambiente seguro é a Ceilândia. Eu sempre vivi lá e vivo lá até hoje. Eu caminho muito pela cidade. E ela começa a ter uma contradição agora, porque ela começa a se verticalizar, então ela vai virar uma grande favela, com grandes prédios, com essa coisa da especulação imobiliária. Então vai criar na cidade um novo apartheid. Aquelas pessoas que construíram a cidade, que lutaram para que a cidade ficasse aquilo que é, elas não conseguem mais segurar a especulação. Porque chega alguém, por exemplo, com quinhentos mil reais e compra a tua casa. Daí você vai para outra favela, que é Águas Lindas. Então, o processo continua. Mas quero com o filme repensar nossa identidade, nossa história. Ressiginificar esse passado para poder ir em frente. Porque aqui não tem nenhum coitadinho, não: luta!

Mas isso fundamentalmente no sentido da linguagem. Luta cinematográfica! Buscar uma montagem, um ritmo que favorecesse encontrar uma atmosfera própria, fora da narrativa clássica. Para ser sincero, acho o cinema contemporâneo muito “coxinha”. Como se ainda só existisse uma maneira de narrar. Amo a poesia do cinema, entende? Acho que há muita poesia no cinema do Eduardo Coutinho também, por exemplo. Que pena que ele nos deixou…

Quando estreia seu filme?

Nada certo ainda. Claro, há os festivais, dá para ele viajar. Mas o que eu gostaria mesmo é que o filme fosse vendido nas barraquinhas de camelô de Ceilândia. A garotada toda poder ver e tal. Por outro lado, conseguir emplacar o filme nos cinemas seria fundamental pela luta que ele traz. Não posso negar que uma publicidade significativa seria boa para todos os envolvidos do filme.

Boa sorte para você. Boto fé. Faltam filmes como o seu.

Obrigado a você. Outros jornalistas ou pessoas que trabalham com cinema vêm me perguntar se eu quero ir a Cannes, Veneza… Olha, eu posso até ir para a França, mas Cannes não conhece o Tonacci, entende? Poxa, o melhor diretor do mundo eles não conhecem! O que eles pensam é que documentário é a pior coisa do mundo. O que há de mais forte hoje no cinema brasileiro contemporâneo está no documentário, com certeza. Posso até ir a Cannes, mas não sou um deslumbrado, não. Estou em outra!

 Obrigado, Ardiley.

Que o anônimo seja não só capaz de tornar-se arte, mas também depositário de uma beleza especifica, é algo que caracteriza propriamente o regime estético das artes. (RANCIÈRE, 2009, p. 47)

Referências

BAZIN, André. O que é o cinema?. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

BERNADET, Jean- Claude. Cineastas em Imagens do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009.

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

[1] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudo Contemporâneo das Artes (PPGCA) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (USP), estudou cinema documentário na Escola Santo Antônio de Los Baños (EICTV), em Cuba. É também músico, violinista e compositor com passagem pela Universidade Livre de Música (ULM). Atualmente realiza seu primeiro longa-metragem, um filme ensaio a partir da obra do cineasta Eduardo Coutinho, Banquete Coutinho.

Contato: josa.veloso@gmail.com

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