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Espaços sonoros. Sonoridades além do documento no audiovisual latino-americano. HU de Pedro Urano + Joana Traub Csekö (BRA) e CORTA de Felipe Guerrero (COL) .

Espaços sonoros

Sonoridades além do documento no audiovisual latino-americano.

HU de Pedro Urano + Joana Traub Csekö (BRA)[1] e CORTA de Felipe Guerrero (COL)[2].

 Por Sebastian Wiedemann

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  1. O documento, a realidade factual e dada a nossa percepção é só o ponto de partida. Como nos lembra Werner Herzog, não podemos suportar pretensões como as do Cinéma Vérité[3], de ser tão só uma mosca na parede. Temos que ser como vespas que picam, pois não têm medo de profanar a realidade. Que picam, pois não acreditam na verdade, tão só no – êxtase da verdade-. Êxtase que se pode sentir numa sonoridade.
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  2. Um espaço, uma realidade social, um hospital que só funciona à metade. Duas frases bastam e demonstram a impotência das imagens para dar conta da realidade. “Isto aqui é real, mas parece surreal”, “sonhos maiores que a nossa capacidade de sonhar”. Falas de personagens que se perdem pelos corredores feitos labirintos, do gigantesco prédio. Numa metade funciona de jeito precário o hospital universitário da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), do outro lado, na outra metade, não casualmente chamada de “perna seca”, os tetos estão caindo a pedaços. Simetria/assimetria, dupla realidade cortada pela metade. De um lado escutamos os depoimentos que deixam perceber como um sistema de saúde pública esta caindo a pedaços, do outro lado e ironicamente quase que ao uníssono, escutamos, como a estrutura em seu derrubar e cair a pedaços faz música.
  3. O olho kubrickiano[4] de Urano, a cada plano no seu rigor formal e estrutural, assim como conceitual se se quiser, agudiza até deixar em estado crônico a realidade. Estado crônico, de absurdo e ironia pura. O gigantismo, e esplendor do prédio, emblemas da arquitetura moderna brasileira, só vem a ironizar e a reafirmar a desproporção e descuido com que um estado trata a dignidade e a saúde do seu povo. Os planos de Urano, sempre em perspectiva, em fuga, justamente deixam isso bem em claro, não há fuga para nenhum dos dois espaços, para nenhuma das duas metades. Ante tal asfixia, a imagem encontra a sua fuga num terceiro espaço, um espaço do meio, justo entre a ruína que cai, e o edifício que tenta funcionar e se manter em pé. Um espaço sonoro. Um espaço onde, à força de estranhamento, o real que parece surreal é suportável e os sonhos grandes demais, aguentam e ainda não caem.
  4. Terceiro espaço, cuidadosamente construído pelos ouvidos de Secco/Csekö. Alcançar o -êxtase da verdade- demanda entrar na materialidade além do documento e essa materialidade é sonora. Para suportar o HU (Hospital Universitário) temos que entrar nas suas entranhas feitas sonoridades. Temos que entrar no espaço que é definido pelos sons provocados nas fendas. Sons metálicos, sons da estrutura sutilmente articulados, desprendendo-se do ambiente para fazer, para serem música. Sons certeiros e secos, que ditam a passagem entre os planos. Sons que na sua musicalidade estranham, enrarecem os espaços, deixando sem distinção os barulhos que por contágio tímbrico viram notas, alturas, que fazem com que o lugar ressoe num outro sentido que não seja o da queda.
  5. Parece música, mas talvez seja o jeito como o prédio grita. Sons/vozes que só são  provocadas pelos pedaços que caem e ressoam no espaço vazio da metade desmantelada e que só consegue ser povoada, justamente, que pelas sonoridades. Espaço sonoro. Espaço estranho, que ainda vive porque consegue soar e vibrar. Pedaços caem, se desmoronam, mas alcançam um –êxtase-  ao serem organizados em composições minimalistas, que nos fazem lembrar os universos e espaços criados por compositores como Edgar Varèse ou Iánnis Xenákis[5] .
  6. Um espaço sonoro, um espaço do meio que resiste à queda. Enquanto este espaço esteja o prédio continuará vivo, em pé, mesmo que coxeando. A musicalidade que se desprende dos seus barulhos, só vem a tentar fazer suportável seu peso e absurdo. Uma queda final, uma queda tão grande, que como o maior dos gritos, não é audível. A metade inútil, mas musical é amputada, é detonada. Silêncio, entulhos, uma metade sozinha, igual de precária, igual de absurda.
  7. O cinema, na sua face sonora, levou o documento a uma outra realidade onde seu absurdo é suportável por um –êxtase– feito música. Os homens surdos que não enxergam além, só viram o HU que caía.
  8. As sonoridades viradas sutil música que se desprende entre o estar em pé e a queda, criam uma fuga para uma realidade absurda. Agora, quando as sonoridades se autonomizam, quando a trilha sonora não é devedora da imagem e diz não para o som sincrônico, então o espaço sonoro mais do que criar fugas para fazer suportável, o que faz é potenciar aquilo que como indício se apresenta na imagem, isto é, as     sonoridades no seu espaçamento conseguem verdadeiramente liberar ritmos.1CORTA
  9. Liberar ritmos, exercício que quase sempre está do lado das sonoridades, é entrar na materialidade. Agora, entrar na materialidade de CORTA é entrar no exigente e repetitivo trabalho que pode ser o de cortar a cana de açúcar. Felipe Guerrero é metódico e com duas estratégias consegue nos levar e submergir até o hipnotismo desta lavoura. Primeiro entende que na sua repetição a ação nunca tem verdadeiramente um final ou um começo. Então filma 20 rolos de 16mm, que montará e editará na mesma câmara (definindo de antemão a duração do filme). Numa espécie de action-filming[6], é consciente que nesse aqui e agora, é mais o que se perde que o que se conserva, mas nesse gesto é que brilha um –êxtase-. Cada plano revela uma face da lavoura de cortar cana, um instante da jornada, um fragmento do ciclo do cultivo da cana (o filme termina com a queima dos cultivos e o recomeço de mais uma jornada, sempre a mesma, sempre diferente). A segunda estratégia é dar espessura a essas imagens entre cativas e fugitivas, é criar uma meticulosa trilha sonora, uma rica paleta sonora, onde justamente os ritmos da ação de cortar e da paisagem serão liberados.
  10. Da mão de Roberta Ainstein, Guerrero consegue em cada plano/toma sequência construir espaços sonoros com ricos arcos dramáticos, que facilmente podem ser apreciados como soundscapes ou peças de musique concrète. A imagem dos cortadores de cana sempre é a mesma, embora diferente. Conseguindo ir sempre além do documento, do fato, ao se submergir nas sonoridades que potenciam a sua expressão. Escutamos o facão se afilar, o facão que corta, o vento que sopra, os insetos que cantam, os sapos, os passos, as vozes. Elementos sempre articulados em proporções e intensidades diferentes que fazem com que sintamos no devir sônico, o devir desse corpo que trabalha.
  11. O facão passa uma, duas, muitas vezes pelo afiador e um ritmo é gerado. O facão corta a cana uma e outra vez, enquanto os insetos vão e vêm. Os planos sonoros se justapõem ou se isolam e a cadência do tempo se deixa ver. A insistência, a diferença na repetição. O rádio, um cantar, um cortar. Oscilações que proliferam ou são contidas. Pássaros que fazem pontuações, máquinas/caminhões que marcam uma partida ou o som da cana se queimando que trará mais uma temporada de lavoura.
  12. Como se não fosse pouco, Guerrero dobra a aposta e corta de cheio com o realismo. Entendendo a lógica dos intervalos e os contrapontos entre rolo e rolo, no espaço vacante e branco da passagem, nos faz escutar a Xenákis. A sua intenção é clara: um outro espaço dado pelo som quer ser construído. As paisagens sonoras dos planos dos cortadores, na liberação de intensidades, querem ir além do plano da realidade. Chega um ponto onde o conglomerado de sonoridades, faz do bloco sônico algo mais próximo do cosmos além da lavoura do que o fato em si registrado. Xenákis, arquiteto de espaços impossíveis faz com que os nossos ouvidos se lembrem disso.
  13. A musicalidade da trilha sonora, leva-nos ao hipnotismo. Num momento estamos escutando os cortadores com o facão, e quando menos percebemos já estamos no universo de Xenákis. Um espaço intermediário se faz presente. Onde cortar a cana já não é só cortar, onde escutar os insetos já não e só escutar para a natureza. Por repetição e progressiva modulação o que começa como uma simples jornada de trabalho num cultivo de cana, termina sendo uma viagem sensorial, onde aos poucos vamos sentindo o picar da vespa que nos leva ao –êxtase-.
  14. Partindo do documento, tão só para deixá-lo, entre HU e CORTA entendemos que o cinema antes que tudo é matéria, matéria plástica a ser esculpida e amassada, para tão só sentir o picar nos sentidos, a vertigem de quem se atreve a abrir  verdadeiramente os olhos para ouvir além…

[1] HU. 2011. 78min. Som Direto, Edição de Som e Trilha Adicional:Edson Secco/ Projeto Sônico: LC Csekö

[2] CORTA. 2012. 69min. Edição de som: Roberta Ainstein/ Sound mixing: Lena Esquenazi/Música: Iannis Xenakis

[3] Os dez mandamentos segundo Werner Herzog. Mandamento 3: http://www.haciendocine.com.ar/content/los-10-mandamientos-de-werner-herzog

[4] Lembremos o rigor com que Kubrick compunha os seus planos: https://vimeo.com/48425421

[5] Não esqueçamos que Xenákis também foi arquiteto, dali que talvez não seja casual esta influência no trabalho de Secco para fazer soar de outro jeito o HU.

[6] Em eco com o action-painting de Pollock

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